top of page

Ciência sem comunicação, vacina sem adesão

  • kauric
  • Oct 10
  • 3 min read

Updated: Oct 14



Silhueta de uma pessoa negacionista apontando dedo para a vacina, em alusão ao negacionismo científico que afeta até a vacinação
A história mostra que a desinformação pode ser tão perigosa quanto a própria doença — afastando a vacina de todos - e só a comunicação pública da ciência pode quebrar esse ciclo

Em 1984, André Brink publicou A Muralha da Peste. O escritor sul-africano mostrou como a desinformação corroía a confiança entre pessoas durante a Peste Negra: amigos desconfiavam uns dos outros, famílias se isolavam e os mitos se espalhavam mais rápido que o próprio vírus. “Parecia-me que esse aspecto talvez tivesse sido pior que a peste em si”, registrou. A lição é clara: em momentos de medo coletivo, o rumor pode ser tão devastador quanto a doença.


O Brasil também já viveu essa batalha entre ciência e desinformação. No início do século 20, Oswaldo Cruz foi acusado de autoritarismo ao defender a vacinação obrigatória contra febre amarela e varíola. Chamado de “monstro” por setores da imprensa, militares e religiosos, enfrentou resistência popular. Mas o tempo revelou a verdade e poucos anos depois, o vilão virou o cientista herói, quando as epidemias cederam e milhares de vidas foram poupadas.


Nos anos 1990, a poliomielite, conhecida como “paralisia infantil”, alimentava pânico e preconceito. Crianças com sequelas eram escondidas em edículas, como se a dor pudesse ser invisível. Foi a Campanha Nacional de Vacinação Infantil — e suas famosas três gotinhas — que quebrou esse ciclo, erradicando a doença em seis anos. A ciência venceu, mas não sem antes enfrentar a sombra do medo e do sensacionalismo tóxico.


Entre 1999 e 2000, em Alto Paraíso (GO), um surto de febre amarela trouxe à tona resistências culturais e religiosas. Muitos acreditavam que a vacina “enfraquecia” o corpo. Só quando o pânico correu mais rápido que a razão, diante de inúmeras mortes, a população aderiu em massa. O mito caiu, mas nunca desapareceu por completo: permaneceu como sussurro no imaginário coletivo, pronto para reaparecer.


A história é cíclica. Sempre que a incerteza e a desorientação se instalam, os mitos encontram terreno fértil. Foi assim durante a Covid-19 e volta a ser agora, com a queda da cobertura vacinal e o retorno de doenças já controladas. A avalanche de fake news e o negacionismo científico corroem a confiança da população. A dúvida, em escala social, é tão paralisante quanto a doença em escala biológica.


Vacina sem confiança é campanha sem adesão. Ciência sem comunicação é palavra sem eco. Não basta informar e divulgar; é preciso comunicar de forma clara, acessível e pública. É preciso traduzir o conhecimento, aproximá-lo do cotidiano das pessoas e mostrar que ele não pertence apenas a laboratórios ou especialistas, mas a toda a sociedade. Só assim a ciência se legitima, só assim a vacina ganha adesão.


O Brasil precisa de uma estratégia nacional de comunicação científica, capaz de envolver escolas, universidades, governos, imprensa, políticos, influenciadores e sociedade civil. Sem isso, seguiremos prisioneiros do pânico, incapazes de construir confiança coletiva.


A arma contra a desinformação é a comunicação pública da ciência, que pode nos libertar dos mitos medievais que ainda assombram o presente. Enquanto a ciência não se transformar em domínio público, continuaremos vulneráveis — e a história, infelizmente, seguirá se repetindo.


Sobre o autorAndré Kauric de Campos é jornalista científico e coordenador do projeto Comunicar Ciência. Atua na ponte entre conhecimento e sociedade, transformando temas complexos em conteúdos que informam, provocam e inspiram decisões mais conscientes.




Assine nossa newsletter e receba atualizações direto na sua caixa de email!

Comments


bottom of page